quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Angola, a terra prometida

Há uma nova geração a querer partir para aquela que foi a jóia do colonialismo português. Mas existem também os outros, os que nunca voltarão a África e continuarão aqui, alimentados pela nostalgia de um espaço. Ou será antes de um tempo?
Luís Palmeirim poderia dizer o mesmo que o herói de Apocalipse Now: «Pedi uma missão e deram-ma.» Mas, no seu caso, o objectivo era mais do que pacífico, apesar de, nesse ano de 1997, Angola estar ainda a ferro e fogo. Teria de medir e pesar crianças de duas aldeias perdidas no Kwanza Sul. E, ao contrário do protagonista do filme, não ficou com razões para se arrepender da aventura em que se metera. A Angola real estava muito longe de corresponder à que idealizara, mas nem por isso o fez menos feliz.
«Os olhos com que vejo Angola não são os do português médio», diz Luís Palmeirim, hoje com 31 anos. E tem todas as razões para o que afirma. Aos 25 anos despediu-se da multinacional onde era gestor de marketing para correr mundo e acabou a trabalhar dez meses em Angola, como voluntário. Sempre tivera curiosidade de ver a terra onde chegara com 3 meses e de onde toda a família partira tinha ele 3 anos. O pai foi o último presidente da Câmara da Luanda colonial.
Afinal, as crianças estavam óptimas. É verdade que algumas choravam quando ele aparecia, porque nunca tinham visto um branco, um pula. Mas a ONU não tinha razões para se preocupar com a situação nutricional dos miúdos de Porto Amboim e Sumbe, por onde andou durante dez dias. A ele, que é gestor e tem hoje a sua própria empresa, a situação só lhe confirmou que estava certa a teoria de Keynes, o pai da economia de mercado pura e dura: «Há uma mão invisível que faz com que, se ninguém intervier, as coisas funcionem bem por si próprias.» Traduzido para Angola, o princípio deve entender-se assim: «Se ninguém intervier, os angolanos sabem tratar deles muito bem. O problema é que toda gente lá quer mexer, porque aquilo é riquíssimo.»
Luís cresceu a fantasiar com uma África que conhecia pelas memórias da família. Como o dia em que o irmão Jorge, hoje biólogo, queria levar para casa uns jacarés recém-nascidos que estavam mal instalados no zoo. Ou a noite em que os pais atravessaram uma savana a arder. E ouvia histórias de rituais de tribos, de quando viviam no interior.
Foi numa Luanda idealizada que Luís aterrou, em Agosto de 1997: «Imaginava uma marginal fascinante, com as palmeiras direitinhas e calçadas à portuguesa com as pedras ainda no sítio.» A Oikos, uma organização não-governamental, escolhera-o para o seu escritório na capital angolana.
A realidade não podia ser mais contrastante. Não tanto pela pobreza, até porque já estivera na Índia e, «para isso, estava vacinado». Mas encontrou uma cidade degradada, para onde a guerra levou mais de três milhões de refugiados. Tinha de saltar por cima de um esgoto para entrar no seu prédio, onde era, aliás, o único branco. E o Governo mandara selar a caixa do elevador, para que não continuasse a ser utilizada como lixeira. Depois da independência, os técnicos partiram e muitos elevadores continuam estragados, sem funcionar.
Visitou a casa onde começou a andar e ali encontrou instalada a Texaco, uma petrolífera americana. Esteve em oito províncias, apesar da guerra. Lidou com «coisas frustrantes», como a burocracia e a corrupção. Aprendeu a palavra gasosa, o pequeno suborno que se paga em situações de aperto, por exemplo no trânsito, e viu até que podia sobreviver sem o pagar.
A imagem da cidade não correspondia à sua expectativa, mas do ponto de vista humano era «muito intensa». E imprevisível. Quando saía de casa, sabia que ia sempre acontecer-lhe «algo com que não contava» Ele gostava desse sentimento.
E construiu até a sua própria teoria sobre aquela ex-colónia: «Acho muito relativo que aquilo seja perigosíssimo. Não é verdade que os angolanos nos tenham raiva, por essa ideia de que andámos lá a explorar o preto. Se o colonialismo pecou por alguma coisa, foi por paternalismo. As pessoas são até um pouco ingénuas.»
Hoje, Luís tem uma ligação profissional com a Oikos, enquanto ambiciona vir a levar a sua empresa para Angola e Moçambique. E dividir a vida entre dois continentes, mas «viver mais lá do que aqui».
Luanda a dois tempos
Precisamente no dia 25 de Abril de 1974, Marques Palmeirim demitiu-se de presidente da Câmara de Luanda, percebendo que aquela deixara de ser a «sua» cidade. Mas nem por isso menos pacífica: «Ninguém me fez mal nenhum.» Já em Lisboa, os desajustes com o novo poder, devido aos cargos que ocupara na administração ultramarina, valeram-lhe três meses de suspensão.
Palmeirim nunca voltou a Angola. A seguir ao 25 de Abril não tinha vontade: «Eu vivi aquilo. E parte das coisas tinham sido destruídas.» O tempo, porém, deu-lhe outra dimensão da perda. Agora, gostava de «ir matar saudades, ver a marginal, a baía, e tomar um grande banho na ilha». Tem hoje 71 anos, e a forma de regressar foi entusiasmar o filho à experiência africana: «Ele encontrou o calor humano de que me lembro. Talvez eu também encontrasse. E gostava de ver o que eles fizeram, talvez coisas, quem sabe?, que nós não conseguimos realizar.»
Marques Palmeirim não esteve sequer um ano na câmara, mas conhecia o terreno em que se movimentava: «Luanda não tinha o passo certo com o que se vivia na metrópole. Havia um largo percurso a fazer na Educação, na Saúde ou na rede de esgotos.» Recorda que queria transformar em bairros sociais os musseques, as cubatas da periferia, que acabaram por ficar no centro da cidade, quando Luanda cresceu. Só deixou pronto o Musseque Rangel.
A sua visão da sociedade angolana de então, que dificilmente aceita classificar de colonial, era de convivência racial e promoção das elites locais: «Quando havia um angolano para um lugar, não o dava a um branco. Por isso demorei a encontrar dois vices para a câmara.»
O arquitecto angolano André Mingas, actualmente a ensinar em Lisboa, acredita que a geração dos colonos não voltará mais para Angola, porque não irá «reencontrar o mesmo espaço». Com os filhos deles será diferente: «Os jovens já foram à escola com negros e são os que vão em Lisboa a discotecas como a Luanda ou o Mussulo, para se reencontrarem com angolanos. Esses poderão regressar.»
André Mingas descreve assim a Luanda colonial: «Era uma cidade fundamentalmente branca, com alguns negros, funcionários ou intelectuais, que formavam uma elite que se ia afirmando. Mas a generalidade dos negros vivia nos musseques.»
Os grandes pontos de encontro dos europeus eram os cinemas ao ar livre, como o Restauração, que se tornou no parlamento, o Miramar ou o Aviz, agora Karl Marx. Ainda têm alguns espectáculos, mas o cinema passou para os vídeos domésticos, devido à insegurança na cidade. E a cervejaria Biker outro must da capital, está hoje muito degradada. Os fins-de-semana eram passados no Mussulo, perto de Luanda, então uma ilha quase virgem e hoje já com algumas construções.
André Mingas fala sobre o dia típico na Luanda da sua juventude: «As pessoas vestiam-se às 5 da tarde, para irem para a zona da Mutamba, perto da marginal. Começava, então, a passagem de modelos. Ia comer-se um camarão, mas aproveitava-se para ver as lojas, com as calças de terylene ou as Lacostes e também as raparigas que saíam do cabeleireiro, na Stendhal. Todo esse centro morreu. Hoje, fica vazio ao fim da tarde.»
Já os angolanos reuniam-se nos musseques, no Centro Social de São Paulo ou em clubes como o Maxinde. Mas não era mal visto pelos negros se alguns deles frequentassem clubes de brancos: «Havia gente ligada aos movimentos de libertação que lá ia.»
Recentemente, surgiu perto do Futungo de Belas, onde funcionava a Presidência da República, a Luanda-Sul, uma zona de condomínios fechados, onde vivem os quadros das grandes empresas e ministros ou deputados. «Foi construída para ser a grande cidade moderna, alternativa à Luanda colonial, que ficaria como o centro histórico.»
Mas este arquitecto discorda da forma como o projecto foi concretizado: «Foi um erro fazer condomínios fechados, pois, à volta, já há pessoas a viver em cubatas. Sem planeamento, corre-se o risco de criar musseques de luxo.»
A hora dos negócios
André Mingas retrata a cidade actual como uma «Luanda de transição». Mas acredita que, dentro de poucas décadas, ela se tornará numa das mais importantes capitais africanas, que a geração de angolanos que tem estado espalhada pelo exterior «marcará definitivamente».
A telenovela da TVI A Jóia de África bem pode ter sido rodada em Moçambique, mas a verdadeira jóia da coroa, a menina dos olhos do colonialismo português, era Angola. Havia petróleo, diamantes, ferro, manganês, ouro. Era o maior criador de gado de África, o segundo produtor mundial de café. Como diz um diplomata português, «Angola tinha tudo».
E tem. Só que, após mais de duas décadas de guerra civi, 60% da população vive abaixo do limiar da pobreza. Mas todas as suas riquezas continuam lá, à espera. Com o cessar-fogo ainda fresquíssimo, assinado apenas em Abril, começam, lentamente, a chegar alguns portugueses e sobretudo angolanos que viviam no exterior, percebendo que esta é a hora.
«Estão a vir alguns portugueses que nunca cá estiveram. São amigos ou filhos dos que aqui viveram e lhes pegaram o bichinho de África», diz Francisco Viana, um empresário que, logo em Maio, regressou a Luanda. Filho de um fundador do MPLA, Gentil Viana, que seria preso depois da independência, Francisco vivia em Lisboa desde 1980. Hoje tem um projecto de parques industriais para Luanda, Benguela e Cabinda.
Os portugueses vão trabalhar para o Estado ou estão a abrir os seus negócios, desde funerárias, à informática ou hotelaria. Aliás, possuem grande parte dos restaurantes. «Portugal só perde nos grandes negócios», esclarece Viana. Excepto na construção civil, onde se destaca a Soares da Costa ou a Teixeira Duarte. A África do Sul meteu-se nas minas e diamantes, a França e os EUA nos petróleos, o Brasil nas obras públicas. Existe depois uma comunidade de paquistaneses e libaneses, que se fixou nos abastecimentos.
Mesmo assim, Viana acha que os quadros angolanos do exterior, que, como ele, estão a regressar são «uma força incontornável». Viveram em Portugal, EUA, Zaire, Canadá ou Inglaterra. «Há quadros nossos em todo o lado, até na NASA. E, no Governo português, temos sempre gente», diz ele, referindo-se aos políticos de vários partidos com ascendência angolana, como João Cravinho (PS), Nascimento Rodrigues ou os falecidos Sá Machado (CDS) e Luís Sá (PCP).
Francisco Viana explica que esta é «uma hora importante para marcar terreno». Por ele, dá-se por satisfeito com o regresso. «Em Angola, havendo dinheiro, corre tudo bem. Trabalho e negócios não faltam.»
Oficiais e cooperantes
Um caso específico de regresso a África é o dos ex-militares que lá estiveram em serviço. Como Rui Teixeira, hoje professor universitário, a quem o 25 de Abril apanhou como comando em Angola. Filho de um militar, oferecera-se para a tropa em tempo de guerra. Saiu de Luanda em 1975. Regressou quatro anos mais tarde, já como cooperante, para ensinar Língua e Literatura Portuguesas.
«Após o 25 de Abril, os primeiros sentimentos dos militares, quando voltavam, eram de confusão e culpa. Com o passar do tempo vieram as saudades, uma nostalgia agridoce, de uma época em que havia a guerra, mas éramos jovens», recorda Rui Teixeira. Acha que poucos voltaram, pelo menos de início. Também entre os retornados de África refere que não tem encontrado grande entusiasmo pelo regresso: «Muitos, sobretudo as mulheres, não querem voltar ao local onde foram felizes.»
Para ele, a saudade relaciona-se com o mato: «Tem a ver com dois tipos de absoluto, o infinito do espaço e a eternidade do tempo.» Mas compreende quem recorda com gosto as cidades: «As esplanadas estavam cheias de gente a beber cerveja e a comer camarão. A vida era farta. Até os soldados viviam bem. E o sexo era fácil.»
Hoje, tem o projecto de organizar um curso na Universidade Agostinho Neto, em Luanda. Conta que desenvolveu «uma relação física» com Angola, a sua segunda pátria, diferente da que tem com a primeira. Talvez porque percorria todo o país de helicóptero, quando fecha os olhos é o verde – escuro das selvas e o quase ocre das chanas, as grandes planícies do Leste angolano, que ele vê. E tem, claro, com Angola, «os laços de sangue» que uma guerra sempre deixa.
Alguns militares fixaram-se em África mesmo antes da independência. Pezarat Correia recorda que, desde o início da guerra colonial, o Governo entusiasmava os militares a passarem lá à disponibilidade, como forma de reforçar a presença portuguesa. Fazendo hoje as contas, imagina que uns 2% dos homens que comandou terão lá ficado.
Pezarat Correia foi consultor num projecto de cooperação com Angola. E as relações que muitos dos «militares de Abril» tinham com os dirigentes dos novos países africanos permitiram-lhes trabalhar em projectos de cooperação com aquele país, ou criando as suas próprias empresas, em áreas como o import-export. Foram os casos de Rosa Coutinho ou Vasco Lourenço.
Alguns dos réus do processo FUP-25 de Abril, como Otelo Saraiva de Carvalho e Mouta Liz, refizeram a vida abrindo em Luanda a Rotliz, uma empresa de import-export.
O que é a nostalgia?
A advogada Manuela Cunha cresceu em Camabatela, um planalto agro-pecuário, e sempre achou uma fantasia a tão falada nostalgia de África. Foi preciso vir para Lisboa para acreditar que isso existe. Mas de que falamos quando falamos de nostalgia?
Manuela fez parte do governo de transição após a independência, em 1975. Depois voltou a Portugal, onde estudara, e ficou, por razões pessoais, durante quase 20 anos. Hoje, dá aulas na Universidade Agostinho Neto, tem um escritório em Luanda e tenciona dividir a sua existência entre lá e cá.
Voltou ainda em tempo de guerra, em 1994, quase acidentalmente. Foi numa missão à África do Sul e passou por Luanda. Quando deu por isso, estava lá. Os amigos tinham-lhe criado todas as condições para regressar. Mas acha que ainda pouca gente está de volta: a nostalgia choca com a dificuldade em arranjar casa ou transportes. Deixou Luanda com 600 mil pessoas, reencontrou-a com 4 milhões: «Uma noite contei no átrio do meu prédio 60 crianças que lá moravam.» Luanda rebenta.
Mas, voltando à nostalgia, ficou a saber que, em Lisboa e Luanda, são, de facto, dramaticamente diferentes «os extremos», como o clima, o barulho e a cor. Só que a saudade permitiu-lhe também esclarecer um equívoco: «As pessoas, quando falam na nostalgia do espaço, querem dizer tempo.» Os dois continentes vivem a ritmos distintos.
«Em África, a bitola do tempo é o dobro da da Europa. Não conheço ninguém que não vá a casa almoçar, descansar e depois volte para o emprego, e ainda tenha tempo para ir a casa dos outros, para a conversinha de fim de tarde.»
Manuela pensa que a nostalgia tende também a confundir-se com a diferença de estatuto que muitos portugueses tiveram em Portugal e em África. Não é que todos os brancos fossem ricos: «Muitos eram remediados e alguns até pobres.» Mesmo assim, a condição era diferente. No entanto, a grande razão da saudade tem antes a ver com a forma como partiram: «As pessoas sentiram–se compelidas a sair. Nunca encontrei um exilado sem a nostalgia do regresso, mesmo quando está a viver melhor. Isso também confunde sentimentos.»
Os dias da debandada
Houve também os portugueses que nunca saíram de Angola, como Grandão Ramos, professor da Faculdade de Direito de Luanda, que fora colocado como magistrado do Ministério Público na antiga Nova Lisboa, hoje Huambo. Depois da independência, assistiu à partida dos retornados, mas resolveu ficar com a família.
Foi o terror entre os portugueses, depois de assassínios, como o do director do Observatório Astronómico ou o de um conhecido barbeiro na cidade, «sobretudo na tentativa de ficarem com as casas». Só quando o Governo considerou estes crimes políticos, com direito a fuzilamento, eles terminaram. Depois do êxodo, sobrou na capital um único juiz-desembargador. Em todo o país ficaram 20 mil dos 600 mil portugueses que lá viviam.
Como os angolanos, Grandão Ramos viveu o período das senhas de racionamento após a independência. Mas, em Luanda, o pior foi a «guerra dos três dias», depois das eleições, em 1992. Ninguém lhe fez mal, mas viveu um tempo de susto: «Só que as dificuldades também ajudaram a agarrar-nos a esta terra.»
Em 1980, este magistrado criou a Associação 25 de Abril, que já teve mais de mil sócios e hoje se fica pelas centenas, pois muitos deles entretanto partiram. Organizam conferências, uma feira popular anual e campanhas de sangue. Actualmente, estão a ultimar a Biblioteca José Saramago.
Também Fernando Rodrigues, dono dos Armazéns do Minho, nunca partiu. Ou quase. Nasceu em Luanda em 1944 e tem, aliás, as duas nacionalidades. O 25 de Abril apanhou-o no estrangeiro, em negócios. Chegou a Lisboa no mesmo comboio em que Mário Soares regressava do exílio.
Quando regressou a Luanda, encontrou a cidade em polvorosa. Na altura da independência, em Novembro de 1975, tinha nas suas empresas «sete comissões de trabalhadores e 1 200 empregados». Resolveu ficar, mas assistiu à partida de todos os seus colegas da direcção do Automóvel Club e Touring de Angola e também à dos seus sócios numa empresa de construção, que acabou por entregar ao Governo, quando deixou de ter condições para continuar.
Porém, as suas duas fábricas, uma de tintas e outra de móveis, ainda funcionaram até aos anos 90. E, no banco, não passou sustos de maior: «As contas de quem ficou nunca foram congeladas.»
O êxodo foi também precipitado pela morte de alguns comerciantes portugueses nos musseques. E muitos assustaram-se com um discurso que Fernando Rodrigues atribui a Agostinho Neto, em que terá dito que «o que era dos brancos será dos negros». Mas existem diferentes versões sobreas palavras que terão assustado os colonos. Há mesmo quem as atribua a Savimbi, que, num comício, terá dito isso em umbundo.
«Muita gente decidiu ir passar a independência a Lisboa e, depois, já não pôde voltar», lembra Fernando Rodrigues. Em 1976, surgiu a célebre lei dos 45 dias: quem se tivesse ausentado por mais tempo, teria os bens congelados.
Fernando ficou até 1977. Veio então para Lisboa, devido aos rumores de que os angolanos só iriam passar a poder sair de dois em dois anos. E, entretanto, ele mandara a mulher e os filhos pequenos para Portugal. Voltou a Luanda em 1983, mas mudou de hábitos: «Passei a estar mais confinado a casa. Não estou para ser incomodado por um polícia.»
Alfredo de Jesus, conhecido por Manguxi, vai fazer 41 anos de Angola. Nascido em Gouveia, na Serra da Estrela, foi em adolescente juntar-se à família, que tinha uma grande fazenda no Pango Aluquem, a 170 quilómetros de Luanda, na região dos Dembos. Fala hoje três dialectos.
De toda a família foi o único que ficou após a independência: «Queria segurar o que era nosso e confiava na população.» Aliás, tinha um motivo acrescido para lá continuar. Casara com uma angolana e tinha a primeira filha para nascer: «Com uma mulher negra e filhos mulatos, não sabia como seriam as coisas em Portugal.»
No Pango continuou a ser feliz, apesar da guerra: «Não tive problema nenhum. Acho até que fui protegido, por ser um branco que ficou.» Até que a UNITA tomou a zona, em 1986, e teve de fugir para Luanda. Era, então, o único português que restava no Pango Aluquem.
Manguxi, que comercializava café e óleo de palma, abriu na capital um negócio de cimentos. As propriedades foram confiscadas, mas o Governo já lhas devolveu por um bom preço. As estradas do Pango ainda não estão totalmente desminadas, mas ele voltou lá, recentemente. E mostra as fotografias que fez: «Aquilo era só mato, mas senti-me em casa.» E está a preparar o regresso.
Hoje, não só os seus irmãos querem voltar, como muitos portugueses se aproximam dele, para saber como param as modas: «Têm saudades da vida que levavam cá. Andam-se quilómetros e quilómetros para almoçar com um amigo. Muitos querem vir ver como estão as coisas que deixaram. E outros dizem que não querem morrer sem vir a Angola comer uma funjada», um prato com farinha de milho ou mandioca amassada.
O ano da esperança
«Grande parte dos portugueses que estão a voltar não são os que lá viveram», frisa Humberto Baptista da Costa, primeiro-secretário da Casa de Angola em Lisboa. Pelo que ele conhece através desta instituição, acha mesmo que a geração que foi vindo para Portugal depois da independência nem sequer ali voltará: «Passaram muitos anos, as pessoas mudaram de hábitos e aquele mundo já não é o que conhecemos.» Não se pode regressar ao que já não existe.
Constituem, de certa forma, uma geração perdida, que não voltará lá, mas que também não se sente totalmente parte daqui, apesar de se ter integrado económica e socialmente. Como diz Baptista da Costa, «vivemos no paquete». E, no entanto, houve um momento…
Durou apenas entre 25 de Abril de 1974 e o início da guerra civil, em Maio de 1975. «Foi um ano excepcional e que está muito mal estudado. É um momento em que ainda estamos todos presentes, cada um com a sua ideia de Angola, mas todos a pensar na independência. Foi o ano de todas as esperanças, de todos os projectos», explica Maria Alexandre Dáskalos, casada com o historiador Arlindo Barbeitos e ela própria a preparar o mestrado em História.
Lembra que, ao contrário da África do Sul, não houve em Angola uma organização de direita formada por brancos: «Isso teve que ver com a política do marcelismo, que foi de maior convivialidade racial e mais distensão. Mesmo os brancos aceitaram que a independência era para os negros. A Angola colonial tinha sido de separação entre o mundo dos brancos e o dos negros, com algumas pessoas que faziam a ponte entre ambos.»
Hoje, diz Maria Alexandre, «cada um tem na cabeça a sua Angola, ou mesmo várias, consoante o tempo que lá esteve». Ela, que nasceu em Nova Lisboa, teve de fugir para Luanda logo no início da guerra. Voltou seis meses depois, para encontrar a cidade com outro nome e vazia: «Em Luanda, depois da independência, assistira às filas de caixotes com destino a Lisboa. Mas ali era diferente. O merceeiro, o padeiro, toda a gente partira.»
Maria Alexandre pertence a uma família que estava há várias gerações em Angola e com ligações ao MPLA. Depois, os caminhos descruzaram-se. No seu caso, há 18 anos que se afastou daquele partido. Fixou-se em Lisboa há dez e, desde então, já voltou ao Huambo. Está, aliás, para lá regressar agora. Mas dificilmente chama a isso ir à terra: «Voltar ao paraíso da infância é, por exemplo, visitar o porteiro da escola. Nós não podemos fazer isso. Muita gente que conhecia está hoje morta. A guerra foi tão prolongada que nos tirou as referências.»
Emília Caetano / VISÃO nº 510 / 12 Dez. 2002

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