A
forma como tudo mudou em Luanda, depois do 25 de Abril, é difícil de
descrever, aí que a descrição que se segue seja longa, muito longa.
Em
Luanda, estudava numa escola nocturna. Eu e algumas das professoras
éramos as únicas brancas, mas isso não impedia que, até então, fossemos
todas amigas, como é normal numa sala de aulas. Cerca de um mês depois
do 25 de Abril, tudo começou a mudar. Passei a ser marginalizada. Fui
várias vezes agredida sem saber por quem, com pauladas e socos nas
costas, sempre acompanhadas da frase maldita: "vai-te embora ó branca!".
Agressões aleatórias a caminho da escola, por colegas negras, sem
qualquer razão que a não a denunciada pelo "vai-te embora ó branca!"
aconteceram várias vezes. O ambiente começou a ficar bastante hostil. Em
Maio do ano seguinte e como faltava pouco para acabar o ano, que eu não
queria perder, ia tentando aguentar a situação. Não contava nada em
casa, para que não me impedissem de ir à escola.
Recordo o terror
vivido numa das minhas deslocações para o liceu. No autocarro, do
trabalho para a escola. O autocarro ia abarrotar de cheiro,claro que só
iam pessoas de cor, eu era a única branca. Pouco depois numa paragem
ainda na baixa de Luanda, entrou a minha professora de ciências . O
autocarro foi seguindo o seu percurso, e esvaziando. Quando não
restavam mais do que uns 20 passageiros, velhos e novos, todos negros,
mais eu e a professora, começaram as provocações, com gritos de "morte
ao branco" e a fazerem obscenidades ao pé de nós. Permanecemos
aterradas, como que paralisadas, eu e a professora, sem sequer ousarmos
olhar uma para a outra, procurando não dar qualquer pretexto para que
algum iniciasse o ataque. Eram inúmeras as histórias de autocarros
desviados para os musseques, com violações e assassinatos, pelo que
procurámos evitar qualquer comportamento, gesto ou olhar que pudesse
servir de pretexto, mas foi tanto o terror porque que passamos nessa
viagem, ainda hoje me lembro com pavor desses momentos, vi a violação e
morte na minha frente… Acho que só não aconteceu porque, quer eu quer a
professora, ficamos paralisadas e parecíamos umas múmias sem vida, sem
reacção, invadidas peloo terror. O coração batia mas o cérebro estava
paralisado. Foi a primeira vez na minha vida e única em que paralisei de
terror tal foi o pavor infligido sobre nós, durante essa viagem. Quando
chegamos à paragem perto da escola, nem nos conseguimos levantar, tal
era o terror sentido. No entanto eles, que nos tinham identificado
pelas batas, encarregaram-se de nos empurrar porta fora, como quem
atira com sacos de batatas, e com umas estaladas e uns "anda branca, por
hoje tens sorte!". Depois disto, nunca mais andei de autocarro.
Cheguei
muitas vezes ao Liceu para deparar com cartazes a preanunciar explosões
para as nove da noite. Sozinha, meio perdida no meio da confusão,
voltava para trás, pé ante pé, com medo de ser notada pelos muitos
grupos de miúdos, com um máximo de 10 anos, que andavam com varapaus na
mão, a perseguir tudo o que mexia. Entravam pelas casas adentro,
espancavam quem lá encontrava, saqueavam o que lhes apetecia e depois,
mais tarde, iam os mais velhos acabar o serviço - o que consistia em
matar quem persistia em lá ficar, mesmo depois dos saques. Num dos dias
vi um destes grupos, enquanto me afastava da escola, e imaginei de
imediato o meu fim ali mesmo, às mãos de uma dezena de crianças. Por
milagre de Deus, eles não me viram, pois iam do outro lado da rua e era
noite. Vi-os a entrar para uma das casas da rua e eu só ouvi os gritos
dos infelizes que lá viviam. Afastei-me o mais depressa que pude, mas
sem correr para não atrair as atenções.
Num outro dia assisti a dois
ou três negros a tocarem à campainha de um prédio. Quando alguém veio à
janela, dispararam as metralhadoras que traziam. Nem parei para olhar,
afastei-me o mais depressa que pude. Soube, depois, que tinham abatido o
proprietário de uma farmácia.
Andar na rua era, assim, um risco
grande. Valiam-nos as muitas árvores existentes à noite e a pouco
iluminação. Por outro lado, era pouco crível uma branca andar pela rua
de noite, pelo que eu vestia um casaco preto e uma calças castanhas,
tirava a bata da escola, que era branca, e assim era mais difícil
reparem em mim.
Era frequente ver passar camiões da tropa, com panos
pretos a tapar o interior. Dizia-se que levavam pessoas que tinham
sido mortas.
Havia milhares de angolanos brancos que não conheciam
Portugal, pois já há gerações que as famílias respectivas lá estavam.
Dessas morreram famílias completas, para saciar a sede de vingança.
Nunca cá ouvi referência alguma a esta situação.
Lembro-me
doutra situação que aconteceu estava eu no escritório onde trabalhava,
no Largo Diogo Cão, de frente para o porto marítimo. A certa altura
apercebi-me de uma grande confusão no local de onde saiam os camiões e
deixei-me estar a observar e tentar perceber o que era. Vi um homem
branco a ser agredido à paulada, e ser arrastado. Até o ferro da paragem
do autocarro foi arrancado para o agredirem. O homem conseguir meter-se
por baixo de um carro estacionado. Entretanto vi parar um carro cheio
de negros, conseguiram tirá-lo debaixo do carro onde se tinha escondido
meteram-no dentro do carro onde viajavam, e arrancaram em alta
velocidade. Os meus colegas que trabalhavam na estiva disseram que era o
carro da sede do MPLA, para onde o levaram e onde acabou por ser
assassinado. Coisas destas eram constantes. Soube depois que tudo tinha
começado quando o infeliz ia a tentar sair do porto com o camião e um
grupo de estivadores, de rádio ao ombro, não permitia a passagem do
camião. O homem teria parado, e pedido para o deixarem passar. Ora, como
podia um branco estar a dar ordens!? Só podia estar a pedir para
morrer... e foi o que aconteceu.
Quantas vezes não vinha uma
rajada de metralhadora do morro que existia atrás do palácio do
governador? Muitos morreram assim, sem que nada os protegesse das balas
perdidas. Não havia pão, não havia leite, não havia um mínimo para nos
alimentarmos, em lugar algum. Tive alturas em que esperava que uma bala
me matasse como quem espera a coisa mais normal da vida, nunca pensei
ser possível sobreviver, tal era a a sanha dos ataque aos "brancos".
Pensei que ia lá morrer, pois além de toda a violência contra nós,
também se guerreavam entre eles e, frequentemente, ameaçavam rebentar os
depósitos da gasolina e aí Luanda seria uma bola de fogo.
De
todos as situações porque passei houve uma que me marcou e me
traumatizou mais. Foi na altura em que o bairro onde morávamos "ficou no
meio" de um ataque das forças do MPLA contra as forças da FNLA.
Passámos a noite toda com crianças de dois e quatro anos debaixo das
camas, com um tiroteio sem fim, lá fora. No nosso jardim estavam forças
do MPLA, armados até aos dentes, com lança-roquétes (nome que ouvia
chamar aquilo), granadas, tudo que era possível. Foram tantos os tiros
que atingiram a nossa casa, mas por Deus nenhuma granada a atingiu.
Estávamos todos petrificados de medo, quando nos bateram á porta aí a
nossa respiração parou... Um primo meu, de rastos, foi à porta e
abriu-a. Os do MPLA pediram uma garrafa de óleo pois as armas estavam a
encravar e, de caminho, perguntaram se havia liamba. Face à resposta
negativa do meu primo sobre a liamba, eles voltaram para as posições de
combate.
A manhã chegou sem que ninguém tivesse conseguido
pregar olho. Num acto de desespero o meu primo e pai de duas meninas,
saiu de casa fora em direcção ao jardim nas traseiras da casa e foi
fazer lume com carvão e aí arranjou os biberões para as filhas, que
estavam cheias de fome. Nós continuamos nos esconderijos . Um grupo
tropas Portuguesas, penso que da marinha, ia a seguir em alta velocidade
pela marginal, quando começou um tiroteio muito forte. Tiveram de parar
e correram, saltando os muros do nosso jardim, a deitaram-se no chão.
Lembro-me que um, ao cair, bateu num vaso em pedra e acho que deve ter
partido qualquer coisa pois, depois de ter abrandado o tiroteio, quando
se foram embora, tiveram de levar esse camarada em braços. Os covardes
esqueceram-se que estavam lá os compatriotas deles. Fugiram que nem
ratos.
Num desse intervalos entre tiroteios, o meu tio disse:
"Tudo para os carros!". A correr, quase uns por cima dos outros, fugimos
do nosso bairro que estava a ser massacrado e fomos para a baixa de
Luanda, para a casa de uns parentes. Nunca mais voltei à Praia do Bispo.
Saí de casa com a roupa que tinha e o que me valeu foi uma mala de
roupa que tinha mandado, já há algum tempo, por um soldado vizinho.
Antes
da viagem de volta à metrópole, trocaram-me 5 mil angolares por 5 mil
escudos, pois os angolares não valiam nada fora de Angola. Deixei uma
ordem de transferência do meu outro dinheiro para aqui, transferência
essa que, até hoje, nunca se completou. Passados uns dias pudemos,
finalmente, ir para o aeroporto e arranjar lugar num avião. Foi preciso
ter recorrido aos conhecimentos que tinha por trabalhar com as
companhias de navegação para conseguirmos os bilhetes. Mas nessa altura
eram milhares e milhares os que dormiam no chão, no aeroporto, crianças
tudo, sem condições, sem alimentação, á espera de poder conseguir
regressar! O que eu vi, meu Deus, quanto desespero.
Saímos de
Luanda no dia 9 de Agosto de 1976, ás 22h00. Ao sobrevoar Luanda chorei
convulsivamente, porque eu adorava aquela terra, tão linda, tão
maravilhosa. Senti, nesse momento, que não voltaria lá mais...
Porquê
sair assim? Porquê passar por todo este terror para milhares de pessoas
que chamavam a Angola a sua terra? Foram muitos dias meses de um terror
que não esquecerei, vivido na primeira pessoa.
Obs. Será difícil
para todos os senhores do 25 de Abril de 1974, compreender que o
tratamento dado aos expoliados das nossas excolónias foi indigno, e
comprender que eles (esses senhores) não merecem qualquer respeito por
parte dos que foram lá maltrados e aqui rejeitados e aplidados como (os
retornados). Os ricos safam-se sempre quem sofre é sempre o povão...Não
acreditam!...Quem era lá rico aqui também continuou a ser rico...Os
diamantes estavam para eles á mão de semear. O povo sempre o Povo. É
quem paga, as cabaladas .O que noveu o 25 de Abril e 1974 foi a sede do
Poder
Published by Gracinha